text
stringlengths
0
94
sistema educacional brasileiro, segundo o qual eu teria o direito de passar a estudar um
ano no curso pré-universitário. Por motivos burocráticos e econômicos, encontrei-me dois
anos na cidade de Itu. Vou passar por sobre os motivos, sobre o programa, sobre o nível
dos estudos e as vivências nesta cidade provinciana e especial e me concentrarei nos
assuntos que se juntaram ao meu conhecimento e à minha consciência.
Num mundo em estado de guerra, e num ambiente carregado de ideologia, nos
ocupamos dela em abundância. Quis meu destino e encontrei dois excelentes
5
porofessores para a vida, que estiveram na Europa após a Primeira Guerra Mundial e
vivenciaram na própria carne a subida do fascismo na Itália e a guerra civil na Espanha.
Passei muitas horas nas sapatarias deles e escutei as suas opiniões sobre a classe
operária européia entre as duas guerras mundiais. Um era socialista e o outro anarco
sindicalista. o que unia as suas opiniões era a potência da Alemanha nazista e o
retrocesso real do comunismo stalinista. Absorvi essas idéias sem críticas. Aprendi com
os dois, para a cristalização das minhas concepções.
Próximo ao fim da guerra, nos anos de 1944 1945, houve uma trégua entre
Vargas, o presidente para fascista do Brasil, e Prestes, o líder lendário do Partido
Comunista. Foi permitido ao Partido Comunista aparecer em público sob o disfarce de
organizações em prol da democracia, e em pouco tempo apareceram em todo o Brasil
clubes abertos que se denominaram "Centro Democrático", cujo sucesso lhes foi
garantido graças à grande experiência que acumularam na ilegalidade.
Só falta de experiência e precipitação podem explicar a minha prontidão de ser
atraído para a experiência comunista. o meu "recrutador" era também aluno da escola e
os encontros entre nós se revestiram de caráter subversivo. As células eram pequenas e
só ele sabia sobre elas. Ouvi conferências, participei de encontros com os "Heróis
Subterrâneos". Mas, compreendi que meu amigo era mais entendido em recrutar e
organizar do que no campo ideológico do modelo stalinista. Pedi material e livros que me
eram difíceis de conseguir, como "A Introdução ao Marxismo", de Plekhanov, "O Estado e
a Revolução", de Lenin, "O Problema Nacional", de Stalin, e a adição de brochuras que
glorificavam "o sol dos povos" e o paraíso soviético, e principalmente hinos de louvor ao
heroísmo supremo do Exército Vermelho e do povo russo. A contribuição das Forças
Unidas na vitória sobre a Alemanha não era lembrada siquer por uma palavra. o meu
"recrutador" desapareceu de repente, e pude escapar dessa armadilha. No futuro, quando
ainda me ocupava de discissões ideológicas entre os diversos movimentos, abençoei o
hábito que adquiri de prestar atenção e a importância do estudo ideológico. Sem isso, não
há possibilidade de estudar e compreender a realidade social e política.
Nos anos de 40, Itu era uma cidade católica, com muitas igrejas e ampla atividade
religiosa eclesiástica, principalmente aos domingos, nos quais costumavam famílias
inteiras ir à igreja e os jovens costumavam se encontrar antes e depois da missa. Eu
também vivi esta experiência, e costumava me encontrar com a minha namorada após a
missa, sob o olhar inquiridor da sua mãe, e passeávamos em torno do jardim público. À
pergunta porque não entra na igreja, se os poloneses, em geral, são católicos apegados?
"Eu tenho um adendo ao meu polonês, eu sou também judeu". A resposta não
surpreendeu, pois em diversas ocasiões eu assim respondia, e ao mesmo tempo evitava
conversas sobre assuntos religiosos. Eles eram entendidos na tradição católica, e eu não
senti a necessidade de ser adversário, tinha consciência da minha ignorância como judeu.
À minha namorada perturbava o fato que eu a esperava fora da igreja. Ela voltava ao
assunto e à sua perturbação, e lembrou as palavras do padre que à entrada da igreja,
antes da "cisterna de água benta" há um espaço grande, que segundo a tradição católica,
é permitido aos "não crentes" visitar, inclusive aos judeus. Suas preocupações, e não a
explicação teológica, elas que me fizeram esperá-la no lugar destinado aos "não crentes".
A missa em latim e o canto gregoriano na igreja provinciana no estilo português colonial,
tudo isso não me impressionou. Mas continuei realizando o cerimonial até que deixei Itu.
o período de dois anos que passei em Itu, no seio da sociedade brasileira, longe da
família e da comunidade judaica, possibilitou-me ampliar a minha compreensão dela, de
ângulos e pontos de vista diferentes, e é impossível não gostar dela.
Após menos de um ano, na crise espiritual e sentimental em que me encontrei no
meu retorno ao judaismo ativo, lembrei-me com relutância do período "eclesiástico" de Itu.
Pois, eu vinha de casas muito religiosas, meu avô era de Piaski, devoto declarado do
"rabino de Trisk", e meu avô Zeev, à sombra de quem fui educado, construiu uma
6
sinagoga em nome de sua família, e cumpria os preceitos religiosos, tanto os fáceis
quanto os difíceis. Meu pai era religioso que cumpria os preceitos nas condições da
época, a comida Kosher ele trazia de São Paulo, e em sua velhice construiu a sinagoga
da coletividade em Santos.
São Paulo
Inscrevi-me numa escola que era uma espécie de preparação para a universidade
(cursinho), na qual estuda-se as matérias para o vestibular da Faculdade de Medicina,
física, química e biologia. Depois de poucas semanas de estudo, tive a certeza que não
tinha chance de enfrentar a prova de ingresso para a universidade, que estava lotada de
candidatos que vieram dos melhores ginásios do Estado de São Paulo. Entrei em crise
pessoal, pois sabia das dificuldades econômicas de meu pai, dificuldades que se
agravaram devido à operação que minha mãe tinha que ser submetida com urgência pelo
seu estado crítico. Minha irmã Ida cresceu, e com ela as despesas. Sentei com meu pai e
expus diante dele as alternativas e eu disse-lhe que eu achava que não estava capacitado
para ser bem sucedido no vestibular e que eu necessitava aulas intensivas, e também
achava que não haverá prejuízo para mim se eu interromper os estudos por um ou dois
anos, para ajudá-lo, pois eu conheço o trabalho, e quando sentirmos que a tensão baixou,
voltarei a estudar. Meu pai disse simplesmente que ele não trabalhou a vida toda para
que eu volte a esse trabalho desprezível. Sua posição bancária era estável, e não há
investimento melhor do que financiar estudos. Aceitei o veredito e cheguei a São Paulo,
onde encontrei uma residência, onde me forneciam alimentação a preços razoáveis, e
havia também transporte fácil para chegar à escola.
Hershel Mlinash
o catalizador que mudou a minha vida na época da minha crise foi um amigo de
meu pai, no passado membro da direção do Hashomer Hatzair de Varsóvia, homem culto,
que sabia hebraico e manteve relações com seus companheiros que emigraram para
Israel. Quando passei, por acaso, em frente à sua loja na Rua Prates, me chamou e disse
que tinha um assunto importante sobre o qual queria conversar comigo. Voltei no dia
seguinte e ele começou a conversa contando sobre o Holocausto e a destruição do
judaísmo europeu. Eu sentei, tenso e atento. Ele falou durante horas, às vezes eu o
interrompia com perguntas, e ele contou de forma seca, exata, aquilo que sabia. Ele foi
obrigado a se confrontar com as minhas perguntas sobre o povo judeu, a religião e a
história judaica, pois eu era completamente ignorante no assunto. Não deixei em branco
nenhuma pergunta. Eu tinha necessidade de um apoio interno mais sólido, para me
defrontar com problemas de tal amplitude. Ainda não havia usado a expressão l'extermínio
do povo judeu na Europa'. Depois disso, começou a falar comigo sobre Eretz Israel,
Palestina, as lutas, sobre os ingleses e os árabes. Falou sobre a Palestina como único
refúgio para a salvação dos sobreviventes do holocausto. Estávamos na época do 'livro